16 de maio de 2014

NOVAS CONEXÕES CEREBRAIS

Na maioria das pessoas, o lado esquerdo de cérebro processa os estímulos
do lado direito do corpo; e vice-versa (Imagem: Sxc.hu).
Publicado em 12/05/2014. Atualizado em 13/05/2014.

Neurocientistas brasileiros esclarecem antigo paradoxo que, há décadas, intrigava a comunidade científica. Em descoberta inédita, eles identificaram duas novas vias de comunicação entre os dois hemisférios do cérebro.

Imagine-se como ‘cobaia’ de um experimento neuropsicológico. Sem pânico – ninguém abrirá seu cérebro nem implantará eletrodos em seus miolos.

O teste é deveras simples: por debaixo de uma mesa, sem que você veja, o cientista colocará em sua mão esquerda um objeto qualquer – como, por exemplo, uma chave. Sua tarefa será apenas senti-la por meio do tato. E, em seguida, deverá dizer ao pesquisador o nome do objeto que você identificou.

Pessoas ditas normais não teriam problema algum em realizar esse teste. As informações táteis captadas pela mão esquerda são enviadas ao hemisfério direito do cérebro. Mas, para que se possa expressar verbalmente a ideia de que é uma chave, a informação terá de ser transferida do hemisfério direito – que recebeu os estímulos – para o hemisfério esquerdo – o responsável pela linguagem. Essa comunicação é feita principalmente por meio de uma estrutura cerebral que os cientistas chamam de corpo caloso: um conjunto compacto de fibras nervosas que funcionam como verdadeiros ‘cabos’ de transmissão entre os dois hemisférios.

Acontece que algumas raras pessoas já nascem sem essa estrutura – quadro conhecido como disgenesia do corpo caloso. Outras sofrem sua interrupção cirúrgica, em uma operação chamada de calosotomia – em geral para tratamento de casos graves de epilepsia.

A ausência do corpo caloso impede a comunicação eficaz entre os dois hemisférios do cérebro. E, pela lógica, pacientes que já nasceram sem essa estrutura deveriam apresentar essa incapacidade.

Mas algo parecia não fazer sentido. Pois pacientes cujo corpo caloso é retirado cirurgicamente são, normalmente, incapazes de realizar com sucesso o teste neuropsicológico proposto no segundo parágrafo. E o motivo é um tanto óbvio: a ausência do corpo caloso impede a comunicação eficaz entre os dois hemisférios do cérebro. E, pela lógica, pacientes que já nasceram sem essa estrutura também deveriam apresentar a mesma incapacidade. Entretanto, eles realizam o teste de maneira exitosa – de fato, não apresentam dificuldade alguma em reconhecer o objeto. Por quê?


Tal estranheza desafiou gerações de cientistas. E entrou para a literatura como ‘o paradoxo de Sperry’ – pois o fenômeno fora estudado pelo neurocientista estadunidense Roger Sperry (1913-1994), laureado com o Nobel de medicina e fisiologia em 1981.

Após décadas de incertezas e dúvidas, novos dados finalmente esclarecem o intrigante mistério. Os méritos vão para uma dupla brasileira de neurocientistas: Fernanda Tovar-Moll e Roberto Lent, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, em parceria com uma extensa equipe de colaboradores.

Paradoxo esclarecido

Conexões funcionais (em amarelo) entre os dois hemisférios cerebrais (em azul e vermelho). Em um paciente saudável (A), regiões são conectadas estruturalmente por meio do corpo caloso. Em pacientes nascidos sem essa estrutura (B e C), a conexão é feita por vias alternativas. (imagem: Tovar-Moll et al/ PNAS)

“Sabíamos que os hemisférios de pessoas nascidas sem o corpo caloso se comunicavam de alguma maneira, mas ainda não sabíamos como”, diz Tovar-Moll à CH On-line. “Com técnicas avançadas de mapeamento do cérebro, conseguimos identificar dois feixes anômalos que promovem essa conexão.” Os resultados foram publicados esta semana no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences, nos Estados Unidos.

Foram estudados seis pacientes, todos nascidos sem o corpo caloso. Eles tinham entre 6 e 40 anos. Neles, os testes mostraram que a comunicação entre os dois hemisférios era praticamente igual àquela vista em um grupo controle formado por indivíduos normais. “Entre os pacientes nascidos sem o corpo caloso, porém, observamos estruturas de conexão alternativas entre os dois hemisférios”, observa Tovar-Moll. “São estruturas não observadas em pessoas que têm o corpo caloso.”

São dois canais alternativos de comunicação entre os hemisférios. “Eles ligam a região do córtex parietal superior bilateralmente”, detalha a neurocientista. É uma área relacionada, entre outras coisas, ao reconhecimento tátil.

A explicação do fenômeno, diz a pesquisadora, está associada ao que chamamos de plasticidade cerebral.

Reorganização do cérebro

Plasticidade cerebral é uma instigante propriedade do cérebro – segundo a qual ele é capaz de se remodelar, reorganizar e readaptar a novos contextos de acordo com novas necessidades que eventualmente se coloquem em seu caminho.

“Um paciente vitimado por acidente vascular cerebral pode, por exemplo, ter alteração de fala ou linguagem e, meses depois, recuperá-las; e é exatamente a plasticidade cerebral que está por trás disso”, explica Tovar-Moll.

Da mesma forma, quando uma criança nasce sem o corpo caloso, seu cérebro consegue de alguma maneira se remodelar para compensar a ausência dessa estrutura. Essa compensação, acreditam os pesquisadores, acontece ainda durante o desenvolvimento do cérebro.

A imagem mostra, em verde e azul, dois feixes anômalos de comunicação entre os dois hemisférios cerebrais. (imagem: Tovar-Moll et al/ PNAS)
Os autores do novo estudo sugerem que conexões cerebrais nas primeiras fases do desenvolvimento do órgão podem ser radicalmente modificadas – provavelmente em resposta a fatores ambientais ou genéticos –, chegando a formar conexões anômalas alternativas. “É o que chamamos de ‘plasticidade de longa distância’”, diz Tovar-Moll. Diversas doenças mentais podem ser associadas a padrões anormais de conexão entre distintas regiões cerebrais. É por isso que o entendimento mais detalhado desses mecanismos pode oferecer novo horizonte investigativo no tratamento de diversas desordens neurológicas. Curiosidade: esses estudos requerem capacidade computacional elevadíssima. Como reporta o biólogo e jornalista Carl Zimmer, em recente edição da National Geographic, um mapeamento preciso de um único cérebro humano usaria nada menos que 1,3 bilhão de terabytes – metade da capacidade computacional de armazenamento que a humanidade tinha em 2012.

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line

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